No mês em que é celebrado o Dia da Consciência Negra, a série especial Ceará de Atitude apresenta o cotidiano de luta de Liniane Santos dentro do ambiente acadêmico, por meio dos estudos do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Afrobrasilidade, Gênero e Família (Nuafro)
Pulsa na Universidade Estadual do Ceará (Uece) a veia da luta fortificada de Zumbi. Onde a ancestralidade da mulher negra inspira, dentro do ambiente acadêmico do Centro de Educação no Campus Itaperi, a elaboração de pesquisas científicas para nutrir a militância contra a exclusão, repressão e preconceito étnico-racial. É o Laboratório de Estudos e Pesquisa em Afrobrasilidade, Gênero e Família (Nuafro), que reúne desde 2010, estudantes do curso de Serviço Social para debater acerca da construção da identidade negra e difundir o conhecimento científico dentro da comunidade.
A universitária Liniane Santos, 25, é exemplo concreto da relevante semente plantada com a abertura do Nuafro. Em seis anos no laboratório, a cearense descobriu-se, enquanto jovem negra, dialogou com seus pares e amadureceu a sua fala para ocupar espaços de luta. Hoje, ela é responsável por reverberar a voz de empoderamento junto aos novos participantes que chegam semestralmente ao espaço de estudos, focando no constante fortalecimento do discurso por igualdade e mais espaços de poder para a população negra.
“Aqui no Nuafro tiveram meninas negras antes de mim,e elas me formaram, indicaram os textos que eu tinha que ler, as principais referências teóricas e políticas para eu me formar enquanto pesquisadora. Agora eu repasso esse aprendizado para as outras que vão entrando ao longo dos anos. A gente tem esse processo ancestral se refazendo todos os dias. A gente aprende com as que vieram antes, com toda a luta que se deu antes”, explica.
Liniane começou a ter entendimento do seu escopo social na aula inaugural do curso de Serviço Social, no segundo semestre de 2012, ministrada pela professora e idealizadora do Nuafro, Zelma Madeira. Ao enxergar na figura de Zelma uma liderança negra dentro da universidade, ela sentiu-se motivada a estudar acerca dos temas raciais e compreender melhor o que envolve o combate à discriminação dentro da formação social brasileira. Encontrou a representatividade que despertou para a resistência. “Eu estudei a vida inteira em escola pública e praticamente não tinham professores negros. Quando entrei na universidade vi que a professora Zelma era uma voz única dentro do curso. Não temos outros professores negros. Quando ela apresentou o Nuafro, ela já nos conduz a estar aqui.”
Em pouco tempo vivenciando os estudos e pesquisas em afrobrasilidade, a jovem tornou-se a primeira bolsista do laboratório. Passou a se dedicar avidamente a pesquisas sobre comunidades quilombolas e juventude negra. A leitura mais aprofundada – com acesso a realidades sobre a discriminação, os séculos de exploração, racismo e negação de existência aos negros – conectou Liniane ao mundo e também à sua própria trajetória de vida. “Eu me tornei negra em 2013. Sempre digo que o que marca minha identidade enquanto mulher e jovem negra é o Nuafro. É um espaço onde a gente tem a dimensão da memória, de tudo que a gente viveu para chegar até aqui”.
Durante os encontros com a professora, alunas que foram suas orientadoras e contemporâneas de Nuafro, ela recorda que encontrou realidades paralelas, dentro de um curso cuja presença é majoritariamente feminina, de mulheres aproximadas por vivências doloridas similares. “Quando a gente fala das nossas trajetórias elas se cruzam sem que a gente nunca tenha se encontrado. É normal que numa roda entre mulheres negras você tenha a experiência do cabelo pautada de forma unânime, por exemplo. A gente precisa dos nossos pares nos fortalecendo.”
E a partir da identificação coletiva é que os caminhos para o que precisa ser estudado tornam-se mais nítidos na visão laboratorial. As histórias de preconceito na escola, o racismo sofrido na rua, a opressão da estética, a negação do mercado de trabalho, do ambiente estudantil, universitário. Citando a filósofa feminista Djamila Ribeiro, autora de livros como “Quem tem medo do feminismo negro?” e “O que é lugar de fala?”, no que se refere a autorização discursiva, Liniane pontua a necessidade de se enfatizar o quanto, historicamente, “a fala da mulher negra foi desautorizada”. Por isso, iniciativas como o Nuafro se apresentam hoje como centros de conscientização sobre a importância de representatividade e reconhecimento da luta por igualdade racial.
“A gente conhece esse processo como silenciamento. Você nunca pensa, por exemplo, numa professora negra. Você nunca pensa numa médica negra. Você nunca pensa numa mulher negra ocupando um espaço de poder. Isso é também silenciamento e invisibilidade. Quando você entra no Nuafro tem o acervo da Pedrina de Deus, por exemplo. De uma mulher negra importantíssima para a história do movimento negro, para a intelectualidade, e eu nunca tinha houvido falar nessa mulher. É esse processo de silenciamento que a gente vivencia. Com Carolina Maria de Jesus, com Lélia Gonzalez, com todas as mulheres que produziram intelectualmente, com muita qualidade, e que a gente não tem acesso no Ensino Médio de uma escola pública. Eu fico me perguntando como esse acesso poderia ter mudado a minha trajetória muito antes de chegar na universidade. Até chegar na universidade, a gente passa por processos muito complicados. Como isso tudo seria mais ameno se eu tivesse conhecido mulheres assim!”.
Antes do Nuafro
A infância e adolescência de Liniane Santos foi acompanhada por variadas faces do racismo enfrentado por tantas outras meninas negras desde cedo. “A escola é um espaço muito difícil para as meninas negras por conta da dimensão da estética. Ser sempre inferiorizada, subalternizada. Todas as meninas passam por esse processo. A dimensão do cabelo, por exemplo. Você ser negra com o cabelo crespo na escola, por exemplo, é muito difícil. Eu passei por todo esse processo”, recorda.
O modo dela combater a discriminação era se afirmar como podia dentro da sala de aula: ser a melhor aluna da classe. “A minha mãe me colocava isso porque o meu avô colocou para ela. A gente tem essa ideia constituída que a educação é a única forma de ascender socialmente. Eu tinha isso como a forma de construir estratégias para sair dessas opressões postas pelo racismo desde muito pequena. Eu tentava me destacar dessa forma, com as melhores notas.”
Ainda assim, o caminho até a universidade foi apresentado a ela com muitas dificuldades, alvo de desconfianças e preconceitos por ser mulher e negra. Liniane é consciente de que o enfrentamento da discriminação continuará diariamente. E aí que a necessidade de se capacitar para fortalecer suas estratégias de resistência se tornam ainda mais indispensáveis. “O racismo é uma luta todo dia, o dia todo. Não tem um dia que a gente vá sair de casa e vai dizer que vai ficar tudo bem. Sempre vai acontecer algo. Às vezes de formas sutis, mas vai.”
Enfrentando a negação
As linhas de pesquisa despertadas e desenvolvidas a partir dos encontros do Nuafro são munição para o enfrentamento da opressão sobre a luta do movimento negro. Por meio delas, são apontados com dados e resultados de investigação cientifica que a discriminação existe, e não há como sustentar a negação da existência da população negra oprimida e despida historicamente dos privilégios.
“A gente tem no Ceará essa negação da existência da população negra. Relaciona-se isso até ao processo de abolição, por termos sido um dos primeiros estados a abolir a escravidão, antes mesmo da Lei Áurea. Algumas pessoas dizem que isso se deu porque quase não tínhamos escravidão, mas a gente sabe que houve sim e que temos remanescentes. Temos uma população negra no Estado do Ceará. Nós temos aqui no laboratório meninas negras, pobres, que entram na universidade, se identificam e vem tratar essas questões aqui dentro do Nuafro. Até se colocar como mulher negra é difícil. Existe essa negação. Essas meninas vêm aqui porque sentem a necessidade de falar sobre isso e encontram apoio.”
A resistência hoje
Liniane é integrante também do projeto Mulheres Negras, pensado a partir das mobilizações que se construíram após o assassinato da socióloga, feminista, defensora dos direitos humanos e vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco. Organizado pela professora da Unilab, Vera Rodrigues, em parceria com o Nuafro e Ceppir, trata-se de um curso de formação política e teórica com o objetivo de formar quadros para disputar espaços de poder. O grupo é formado por 30 mulheres negras, que estudam desde o feminismo negro à criminologia feminista. O curso teve início em maio deste ano.
Para a estudante, participar ativamente das lutas atuais do país é papel daqueles que integram o ambiente acadêmico como espaço de militância. “A gente observa o movimento da história do país e da nossa luta. Os momentos de retrocesso, de ditadura, de repressão. Como a gente se reelaborou, para que a gente possa tentar se articular no presente. Momentos difíceis aconteceram no passado, mas nós resistimos, e temos condições de resistir agora. O que nos inspiram hoje são os negros que vieram antes.”
Ela aponta a morte de Marielle como um símbolo dessa luta que se renova diariamente. “Marielle era uma mulher negra mestre, que tinha elaborações teóricas, pesquisava, era uma mulher intelectual. Quando uma voz dessa é calada, isso é um símbolo muito forte. Ela conseguiu romper essa desautorização discursiva, sendo muito forte para falar. E foi calada. Como fica agora? A gente tava caminhando no sentido que conseguimos ocupar espaços de poder, romper várias barreiras. Depois é como se não pudesse mais”
A jovem aponta que o corpo da mulher negra ainda é muito vulnerável. Essa violação dos corpos é uma violência cotidiana. A partir da reorganização do movimento, segundo Liniane, a é percebida a necessidade de elaborar outras estratégias de resistência. “A Marielle atinge a população negra, as mulheres negras mais ainda. Você não tem uma comoção nacional em torno dessa execução política. Mas você tem do ponto de vista político a ascensão de um discurso de direita, de um discurso fascista. Isso agrega mais nesse sentido, traz mais pessoas para a luta. E aí é que a resistência vem mais forte, com um grupo maior de pessoas.”
Sobre a perspectiva futura de luta para os próximos anos, Liniane fala que a ancestralidade torna-se ainda mais fundamental para inspirar a continuidade do combate por conquistas. “A gente tem falado muito de resistências. Aí surge a lembrança pelo movimento negro que vai dizer ‘a gente sempre resistiu’. As mulheres negras sempre resistiram. Nós resistimos quando vinhamos nos navios negreiros e jogávamos nossos filhos no mar para que eles não fossem escravizados. Isso é resistir”, finaliza.
Novembro Negro
Celebrado no dia 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra surgiu em homenagem ao assassinato de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, pelas tropas coloniais brasileiras em 1695. A lei federal que instituiu a data foi aprovada em 2011. Dentro do “Novembro Negro”, o Nuafro realiza anualmente o Seminário Afrocearensidades, que em 2018 tem data marcada no dia 21 de novembro.
“A gente tem o mês inteiro para discutir as nossas questões. Isso é muito importante. É um momento que temos visibilidade sobre os temas de políticas públicas para os negros. O dia 20 é muito simbólico. É quando estamos todos organizados para trazer essa memória desse Brasil que ainda é tão colonial e escravocrata, e que a ideia de que existe essa igualdade ainda não existe aqui”, disse Liniane.
História do laboratório
O Nuafro surgiu em 2010 enquanto grupo de estudos e pesquisas, partindo de uma demanda dos estudantes do curso de Serviço Social para debaterem as questões étnico-raciais. Inicialmente, a professora da Uece e atual titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial, Zelma Madeira, se reunia com os alunos quinzenalmente para tratar de questões pertinentes aos negros: o que é ser mulher negra, o que é a juventude negra e o que é a formação social brasileira.
As reuniões do Nuafro eram realizadas nas salas do Bloco I do Campus Itaperi. O grupo foi crescendo, as demandas aumentando, até ser pleiteado um espaço para se constituir um laboratório com registro no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em 2012, o laboratório foi regulamentado dentro da Uece.
Os estudantes que participam das discussões do laboratório têm desenvolvido projetos diversos que exploram a dimensão racial. Entre eles, por exemplo, estão estudos sobre a resistência da juventude negra na periferia de Fortaleza, a condição de vida das mulheres negras, construção da identidade negra, racismo dentro do sistema penitenciário, além de um mapeamento sobre o sistema de cotas raciais no Estado. As discussões acerca das religiões de matriz africana também ganham espaço. “São meninas que são formadas para continuar esse laboratório, fazer um mestrado e um doutorado fora, para voltar e tentar serem professoras desse curso e contribuir dentro do papel de manter esse laboratório vivo.”
A trajetória do Nuafro na universidade, sob o olhar de Liniane, significa o constante convencimento de que a academia também é espaço dos negros marcarem as suas pautas. Para isso, os encontros do grupo estão possibilitando a formação de especialistas nas temáticas que envolvem as questões raciais. Do laboratório saíram projetos para mestrado, doutorado e estudantes com a missão de buscarem os títulos para voltar às salas de aula com ensinamentos construtivos. Portadores da educação libertadora.
“O Nuafro se configura como um quilombo dentro da universidade. O ambiente universitário ainda é muito branco e negado para nós nas grades curriculares. Não tenho no meu curso uma disciplina que trate especificamente de questões raciais, que é uma luta que tem sido posta pela professora Zelma Madeira hoje. Se a gente pensa na escola pública como espaço para debater essas questões, precisamos de professores formados nesse sentido, e a gente ainda não tem. Aqui é um local para resistir e fortalecer.”
Coordenadoria de Imprensa do Governo do Ceará
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